A arte da cantata: uma jornada pela música vocal e a poesia

Considerada uma das peças eruditas mais populares da história, “Jesus, Alegria dos Homens”, de Johann Sebastian Bach, é uma cantata. Esse tipo de música surgiu a partir dos madrigais na Idade Média, mas foi no período barroco, principalmente com Bach, que esse gênero músical atingiu seu auge.

Aliás, “Bach é o cara”, concorda? Está em vários de nossos artigos desse blog, como uma influência ímpar na história da música sob vários aspectos. Entre tantas de suas contribuições, ele compôs mais de duas centenas de cantatas. Nada mal, hein?!

Mas o que é uma cantata, afinal? É possível até que você já tenha cantado ou escutado alguma coisa nesse formato e nem saiba do que se trata.

Neste artigo, vamos elucidar o tema e mostrar não só a definição de , como compositores e obras musicais que se encaixam nesse formato. Vamos juntos conhecer mais sobre o assunto?

Cantata: definições

O dicionário Aurélio define o termo “cantata” da seguinte forma: “Composição vocal muito extensa, de inspiração profana ou religiosa, para uma ou várias vozes, com acompanhamento instrumental, e às vezes também coro, e destinada aos salões, à igreja, ao concerto, nunca ao teatro”.

Já o dicionário Houaiss exibe duas definições mais sucintas:

  • “Composição vocal-instrumental, frequentemente religiosa, em vários movimentos”;
  • “Poema para ser cantado”.

O Dicionário Online de Português, por sua vez, apresenta a cantata como uma “composição musical para uma ou mais vozes com acompanhamento, geralmente para solista, coro e orquestra”. Também traz outra definição: “Composição lírica própria para ser musicada, formada por coplas e recitativos”.

Sobre esta última menção, é importante esclarecer que as coplas são poemas líricos populares, normalmente constituídos por uma estrofe, podendo ser denominadas também como “quadras” ou “trovas”. Já os recitativos referem-se aos cantos declamados.

Cantata x tocata

grupo de pessoas ensaiando uma cantata

Seja como for, podemos dizer resumidamente que a cantata surgiu como um canto com acompanhamento de instrumentos ou com envolvimento de coro. Assim, fez um contraponto às tocatas, que eram obras totalmente instrumentais.

O termo deriva da palavra italiana “cantare”, que significa “cantar”. As cantatas podem combinar solos vocais, recitativos e, como já dissemos, os coros, com inclusão tanto de temas sagrados quanto seculares.

Apesar de ter uma estrutura flexível e bem variável, na maioria das situações segue um formato típico, com coro de abertura, duas sequências de recitativo e ária, e coral para finalizar.

Esse tipo de música teve seu auge no período barroco. Sofreu um certo declínio no Classicismo e Romantismo, mas passou a ganhar mais relevância na música moderna do século XX, principalmente com a popularíssima obra “Carmina Burana”, de Carl Orff.

Cantata na Itália

Considerada o “berço” da cantata, a Itália se destaca por ter tido diversos compositores dedicados a esse tipo de composição vocal. Um deles é Claudio Monteverdi (1567-1643), considerado o primeiro gênio da ópera e o criador da cantata dramática, que expressava os sentimentos dos personagens por meio da música.

Monteverdi compôs diversas cantatas, entre elas “Exultent Caeli”, de caráter religioso, e “Il combattimento di Tancredi e Clorinda” (O Combate entre Tancredo e Clorinda), um misto de ópera, madrigal e cantata com temática profana.

Outro grande nome italiano foi Alessandro Scarlatti (1660-1725), que escreveu mais de 500 cantatas de câmara para voz solo.

Algumas de suas peças mais importantes nesse gênero foram:

  • Sul e sponde del Tebro – O título desta cantata em italiano significa “Nas margens do Tibre”. Trata-se de uma composição feita para voz, trompete, dois violinos e baixo contínuo, sendo uma obra bastante importante no repertório vocal barroco.
  • Bella madre de’ Fiori – Traduzida como “Bela Mãe das Flores”, esta cantata, executada com recitativos e árias, enaltece a natureza e as emoções.
  • Poi che riseppe Orfeo – A cantata “Quando Orfeu aprendeu” – tradução do título em italiano – foi elaborada por Scarlatti para voz e baixo contínuo. A letra conta a história de Orfeu ao saber da morte de sua amada Eurídice por conta de uma picada de cobra.

Sobre o baixo contínuo, é importante esclarecer que se trata de uma técnica de composição surgida na época da música barroca.

Segundo o músico Marcus Held, professor de violino barroco, música de câmara e história da música no Conservatório de Tatuí (SP), enquanto o contraponto pensava na estrutura da composição de forma horizontal, com inserção de melodias superpostas e independentes, o baixo contínuo trazia uma “visão vertical”.

Basicamente o compositor deveria pensar primeiramente no baixo, que é a linha fundamental da harmonia da composição, dentro dessa técnica. Em outras palavras, o baixo contínuo era a própria sustentação da peça musical.

Podia ser executado por um ou vários instrumentos. Na música barroca, alguns dos mais utilizados eram o violoncelo, o contrabaixo, a viola da gamba, o fagote, o alaúde, a guitarra barroca, o cravo, entre outros.

Influências da cantata italiana

No século XVIII, a cantata italiana foi cultivada por outros compositores, como Antonio Vivaldi, que escreveu 37 peças nesse estilo. Já Georg Friedrich Händel, apesar de ser alemão, começou a compor na Itália para voz e baixo contínuo.

Algumas de suas criações nessa vertente traziam elementos da mitologia greco-romana. Porém, abordou também a temática sacra, como a cantata “Il Trionfo del Tempo e del Disinganno”, feita para o cardeal Ottoboni.

A cantata italiana também influenciou a música de outros países, como a Alemanha, a França e a Inglaterra.

As cantatas de Bach

Fotografia antiga de Sebastiaan Bach

Como afirmamos no início deste artigo, existem mais de 200 criaçoes de autoria de Bach, o grande nome da música barroca. Entretanto, estima-se que existam muitas outras, as quais se perderam devido a motivos diversos.

O compositor criou, em sua maior parte, cantatas sacras, mas também fez algumas de temática secular.

Sua maior produção nesse gênero se deu entre 1723 e 1727, quando se tornou diretor de música em Leipzig, na Alemanha. Neste curto período Bach disponibilizou ao mundo mais de 150 cantatas, a maioria voltada à liturgia da igreja luterana.

Uma delas é “Vergnütgte Ruh, Beliebte Seelenlust”, BWV 170 (Descanso prazeroso, amado desejo da alma”), de 1726. Em tempo: a sigla “BWV” refere-se às iniciais de “Bach Werke Verzeichnis” (catálogo de composições de Bach).

Tal cantata traz uma peculiaridade: em seu terceiro movimento não há a presença do baixo contínuo. Segundo Alfred Dürr, musicólogo alemão, o compositor quis mostrar metaforicamente que pessoas afastadas de Deus estariam sem rumo em suas vidas.

Como o baixo contínuo era a técnica composicional responsável por dar um direcionamento na construção das obras musicais, a sua falta implicaria num certo vazio e inexistência de direcionamento na música.

Já entre as cantatas seculares, uma das mais interessantes é “Schweigt Stille, Plaudert Nicht” – BWV 211, conhecida como “Cantata do Café”. Em alemão, quer dizer “Fique quieto, pare de tagarelar”. Conta a história de uma jovem viciada em café, a qual é interpelada continuamente por seu pai.

Confira um trecho da letra:

Pai, senhor, não seja tão duro!
Se eu não puder, três vezes ao dia,
tomar minha xícara de café,
na minha angústia me transformarei em um cabrito assado murcho.

Ah! Como é doce o café,
mais gostoso que mil beijos,
mais suave que o vinho moscatel.
Café, preciso tomar café.

Carmina Burana: cantata moderna e popular

Na música contemporânea, a obra mais icônica classificada como cantata é, sem dúvida, “Carmina Burana”, de Carl Orff. Em latim, o título pode ser traduzido como “Canções de Beuren”, sendo uma das peças corais e instrumentais mais relevantes e populares do século XX, a ponto de ter sido tema de comerciais de TV e até de cenas de novelas.

O mais interessante nesta composição é o resgate de poemas medievais de cunho popular em latim e alemão.

Conclusão

Gostou de nosso artigo? Claro que não temos como esgotar um tema tão rico em poucas linhas, mas pelo menos trazemos à luz alguns conceitos e aspectos históricos, para que você possa ter a oportunidade de se aprofundar no assunto, caso queira.

Mesmo que o termo “cantata” seja algo totalmente novo em seu repertório de conhecimentos, é muito provável que você já tenha escutado, ao menos, a obra “Carmina Burana”, de Carl Orff, já bastante popularizada pela mídia.

O mais fascinante nesse gênero é justamente o fato de não se prender a uma única temática. Esse tipo de música une elementos da música sacra, popular e erudita, sendo uma vertente muito interessante de conhecer – e ouvir – na história da música.

E nós fazemos sempre questão de trazer assuntos musicais que possam enriquecer seu arsenal cultural. Que bom que você ficou conosco! Até a próxima!

About Luciana Amaral

Luciana Amaral é cantora profissional, jornalista, revisora e redatora freelancer. Já participou de vários cursos de canto, como o Modern Mix Voice, do professor Caio Freire; Solte Seu Belting, do professor André Barroso; Canto Popular, durante o Curso Internacional de Verão da Escola de Música de Brasília (Civebra); e Congresso Online de Voz Cantada, realizado pela Faculdade Novo Horizonte e pela professora Flávia Caraíbas. https://www.instagram.com/luciana.amaral_cantora/

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